A Última Luta do Coliseu

Depois desta afortunada vitória sobre os godos se celebrou um "triunfo", como se chamava, em Roma. Durante centenas de anos tinha-se concedido esta grande honra aos generais ao voltar de uma campanha vitoriosa. Em tais ocasiões, a cidade presenciava marcha de tropas, que arrastavam atrás de si prisioneiros de guerra, entre os quais, às vezes, achavam-se reis cativos e generais vencidos.

Este seria o último triunfo romano, porque celebrava a última vitória romana. Embora tinha sido ganha por Stilicho, o general, foi o imperador menino Honório quem levou o triunfo, entrando em Roma no carro da vitória, e conduzindo até o Capitólio entre o clamor da população. Depois, como era de costume em tais ocasiões, houve combates sangrentos no Coliseu, onde gladiadores, armados com espadas e lanças, lutavam tão furiosamente como se estivessem no campo de batalha.

A primeira parte do sangrento espetáculo havia terminado; os corpos dos mortos tinham sido arrastados fora com ganchos, e a arena avermelhada tinha sido coberta com uma nova camada, limpa. Depois disto, se abriram os portões na parede da arena, e saíram um número de homens altos, de boa aparência, na flor da juventude e força. Alguns levavam espadas, outros tridentes e redes. deram uma volta ao redor da arena e, detendo-se diante do imperador, levantaram suas armas estendendo o braço, e com uma só voz lançaram sua saudação: "Ave, Caesar! Morituri te salutant!" ("Ave, César! Os que vão morrer te saúdam!").

Recomeçaram os combates; os gladiadores com redes tentavam capturar os que tinham espadas, e quando isso acontecia, matavam-nos, implacáveis, a seus antagonistas com o tridente. Quando um  gladiador tinha ferido seu adversário e o tinha caído a seus pés, olhava para os anelantes rostos dos espectadores e gritava: "Hoc habet!" ("Ei-lo aqui!"), e esperava o capricho dos espectadores para matar ou deixar com vida.

Se os espectadores estendiam suas mãos com o polegar para acima, o vencido era tirado dali para se recuperar, se possível, de suas feridas. Mas se mostravam o fatal sinal de "polegar para abaixo", o vencido devia ser morto; e se este demonstrava má disposição para apresentar o pescoço para o golpe de graça, se gritava o escárnio desde as galerias: "Recipe ferrum!" ("Recebe o ferro!"). Pessoas privilegiadas dentre a audiência incluso desciam até a arena, para poder contemplar melhor a agonizante respiração de alguma vitima valente, antes que seu corpo fosse arrastado para a porta dos mortos.

O espetáculo prosseguia. Muitos tinham sido mortos, e a plebe, excitada até o máximo pela coragem desesperadora dos que continuavam lutando, gritava suas aclamações. Porém, de repente houve uma interrupção. Uma figura vestida rusticamente apareceu por um momento entre a audiência, e depois pulou atrevidamente na arena. Viu-se que era um homem de aspecto rude, porém impressionante, com a cabeça descoberta e o rosto queimado pelo sol. Sem duvidar um instante, dirigiu-se a um dos gladiadores envolvidos numa luta de vida ou morte, e colocando as mãos acima de um deles o repreendeu duramente por derramar sangue inocente; e depois, voltando-se para os milhares de rostos que o olhavam, dirigiu-se a eles com uma voz solene e grave que ressoou através do recinto: "Não correspondeis à misericórdia de Deus, que afasta de vós as espadas de vossos inimigos, assassinando-se uns a outros!"


Clamores enfurecidos logo abafaram-lhe a voz: "Aqui não é lugar de pregação! - Os antigos costumes de Roma devem ser observados! Avante, gladiadores!". Deixando o estranho de lado, os gladiadores ataram-se outra vez. Mas o homem se manteve no meio, afastando-os. E se esforçando em vão para fazer-se ouvir. Então o clamor se transformou em gritos de "Sedição! Sedição! Acabem com ele!"; e os gladiadores, enfurecidos pela interferência daquele estranho, o traspassaram, e o mataram imediatamente. Também caíram em cima dele pedras e um monte de objetos que lhe foram lançados pelo furioso público, e assim, morreu aquele estranho na arena.

Seu hábito mostrava que se tratava de um dos eremitas que se entregavam a uma vida santa de oração e abnegação, e que eram reverenciados inclusive pelos irreflexiveis romanos, tão amantes dos combates. Os poucos que o conheciam disseram como tinha vindo dos desertos da Ásia em peregrinação, para visitar as igrejas e aguardar o Natal em Roma; sabiam que era um homem santo, e que seu nome era Telêmaco - nada mais. Seu espírito tinha-se sacudido ante o espetáculo dos milhares que se congregavam para ver como homens matavam-se entre si, e em sua simplicidade tinha tentado convencê-los da crueldade e insanidade daquele ato. 

Morreu, porém não em vão. Sua obra se cumpriu no momento em que foi abatido, porque o choque de tal morte diante de seus olhos mexeu nos corações da gente: viram o aspecto repulsivo do vício favorito ao que tinham-se entregado; e desde o dia em que Telêmaco caiu morto no Coliseu, jamais voltou a celebrar-se ali nenhum combate de gladiadores.

Extraído de "O Livro dos Martires" de John Fox (1517-1587)

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